A Literatura produzida no Brasil sempre foi muito política e muito politizada, mas também trouxe traços de violência, simbólica ou não. Há vários sermões do Padre Vieira que o comprovam, há também sermões do padre em que ele defende-se de acusações que lhe foram imputadas pela Inquisição. No chamado Arcadismo, deparamo-nos como Dirceu (Tomás Antonio Gonzaga), aquele de “Marília de Dirceu”, degredado em África, porque participara da Inconfidência Mineira, sofrendo as agruras do exílio e a saudade de sua amada. Há um sem número de obras que tematizam a dor, o sofrimento, a violência decorrentes de eventos políticos manifestados em prosa e em verso ao longo da nossa história literária.
Um dos autores mais reconhecidos por inserir a violência propriamente dita em seus romances, contos e crônicas é Rubem Fonseca – um dos precursores das narrativas policialescas entre nós. Ler “A grande arte”, sem dúvida, é um soco no estômago. Revisitar a história de Getúlio Vargas, contada em forma de romance em “Agosto” (que se pode ler como “A-gosto”), é um exercício, deveras, fascinante sobre a História [nem tão] recente do Brasil. Há também o Rubem Fonseca contista e a sua obra mais conhecida, neste caso, é “Feliz Ano Novo”, cujo conto homônimo traz a história de Pereba e seus comparsas que, numa noite de Ano Novo, sem nada para fazer, resolveram fazer um grande assalto para distraírem-se e garantirem uma gorda ceia.
De “Feliz Ano Novo”, talvez o conto que mais me atraia seja “O outro” – cumpre lembrar que o vocábulo outro deriva do latim “alter”, que se opõe ao eu, ao idem, ao igual. Assim sendo, o outro é o diferente de nós. No conto, tem-se um narrador em primeira pessoa, um grande empresário, visivelmente solitário, que se sente importunado por um pedinte de rua que passa a acercar-se cada vez mais. O narrador apresenta problemas de saúde, taquicardia, mal estar geral em face à presença do Outro. O Outro pede-lhe dinheiro, aproxima-se, pede-lhe dinheiro para o tratamento da mãe doente, pede-lhe dinheiro para o enterro da mãe recém-falecida. O empresário decide afastar-se do trabalho, procura uma casa de campo para relaxar. Nesse ponto, as suas descrições sobre o Outro fazem-nos imaginar um homem grande e ameaçador, cujo hálito azedo, segundo o narrador, causava repugnância. Eis, porém, que o Outro aparece no local de descanso do narrador e, intempestivamente, o narrador decide assassiná-lo. “Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder” (FONSECA, 2006, p.90).
O desfecho surpreende: ao invés de um homem perigoso, o corpo que jaz ao chão pertence a um menino, demonstrando que o Outro é visto apenas a partir das nossas concepções, das nossas sensações, sem que lhe dediquemos um olhar mais apurado. Pródigos em julgar, estamos nos esquecendo de deixar fruir as nossas emoções pela leitura, pela música, pelo cinema. Aristóteles ensinou, quase 2500 anos atrás, que a catarse, a purgação pela emoção, diante das tragédias, das comédias ou das epopeias gregas, era [e é] fundamental para manter a sanidade e o bem-estar humano. Mais arte, menos julgamento, quem sabe...
Elaine dos Santos
Professora - Doutora em Letras