Quarenta e cinco anos depois, Vitória Gabrielly, o nome da adolescente encontrada morta no estado de São Paulo, vítima de tortura antes do seu assassinato, provavelmente tendo sofrido as agruras de uma morte anunciada, fez ecoar dolorosamente em mim outro nome, outra menina: Araceli.
Araceli Cabrera Crespo tinha oito anos, em 1973, quando foi raptada, drogada, estuprada, morta e carbonizada no Espírito Santo. Eu tinha nove anos naquela ocasião. O corpo de Araceli, de maneira semelhante ao corpo sem vida de Vitória Gabrielly, foi deixado inerte, desfigurado e em avançado estado de decomposição em uma mata dias depois do desaparecimento. A suspeita do crime, nunca comprovada, recaiu sobre três homens da alta sociedade capixaba, eles foram presos, julgados, condenados, a defesa recorreu, o julgamento foi anulado e um juiz de primeira instância absolveu-os.
Nos anos 70, assassinatos com tamanha violência e com requintes de tortura como as primeiras informações dão conta que o foi no caso de Vitória Gabrielly eram incomum, embora o caso Araceli tenha comovido a nação, a tal ponto que o dia do seu desaparecimento, 18 de maio, tenha sido instituído como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Entre elas, o desrespeito aos sonhos de duas meninas, a brutalidade, a falta de compaixão pelo ser humano.
Como cidadã, como professora, como mulher, vivi esses quarenta e cinco anos observando o recrudescimento das relações humanas, a forma como seres humanos acham-se “donos” de outros seres humanos, vigiam-nos em redes sociais, querem ditar o nosso comportamento, constrangem-nos, intimidam-nos, ameaçam-nos. Penso que, nesse momento, mais do que a família da menina Vitória Gabrielly, há um país de luto, aquela parcela do país que ainda tem vergonha na cara, que reconhece os limites da dignidade humana. Por outro lado, fico me questionando como chegamos ao fundo do poço e, também como professora, reflito sobre “alguns monstrinhos” que eu vi serem criados por pais que não admitem ver os seus filhos frustrados, concedendo-lhes a realização de todos os desejos, sem, portanto, impor-lhes limites. Meninos e meninas, criados nessas condições, não sabem onde terminam os seus direitos e começam os direitos alheios, matam porque se acham no direito para tal. Observamos pais e mães que não ensinam aos seus filhos que gestos simples como um pedido de desculpas são balizadores do bom convívio em sociedade, que amar animais como cães e gatos e compreender que eles sentem dor, têm medo, é também uma forma de entender que as pessoas devem e merecem ser respeitadas.
Tempos atrás, vi um desses “monstrinhos” torcer a cauda de um gato apenas pelo prazer de “analisar o ânus” do animal, enquanto ele contorcia-se de dor, tentava libertar-se e os pais riam. Quando eu tentei argumentar, o pai replicou que “não dá nada”. Se um ser humano cresce sem saber respeitar um animal, quem garante que, já adulto, não matará uma pessoa com requintes de crueldade, acreditando-se “dono” do outro corpo, senhor da vida e da morte, do bem e do mal?
Ao acompanhar as notícias sobre a morte da menina Vitória Gabrielly fica muito latente a percepção que há um modelo de nação, de sociedade, de família que faliu e que nós não engendramos formas para equacioná-lo, superá-lo, ao contrário, parece que estamos cada vez mais reforçando-o e, assim sendo, a morte brutal de meninas como Vitória e Araceli não cessará tão cedo, enlutando tristemente os nossos corações.
Prof. Dra. Elaine dos Santos
Revisora de textos acadêmicos/Palestrante
Contato e.kilian@gmail.com