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Quando morre alguém

Por, Professora Elaine dos Santos - Doutora em Letras

Matéria Publicada em: 13/08/2018

Tempos atrás, conversando com o meu ex-professor de Filosofia do ensino médio e que faz “encomendações de corpo” pela Igreja Católica, ele dizia que observa caixões, nos ritos funerais em que participa, e nunca viu gavetas ou qualquer tipo de apêndice que permita ao falecido levar os seus bens, as riquezas que amealhou ao longo da vida. Essa fala lembrou-me imediatamente a personagem Quitéria Campolargo do romance “Incidente em Antares”, de Erico Verissimo.

Em “Incidente em Antares”, como se sabe, algumas pessoas morrem, mas há uma greve de coveiros, os caixões delas ficam depositados em frente ao cemitério, elas “acordam” e, comandadas pelo advogado Cícero Branco, decidem regressar ao centro da cidade para requererem os seus direitos como mortos: o sepultamento. Antes de se reunirem na praça central para um comício, cada um, porém, regressa ao seu local de origem e dona Quita vai até a sua mansão. Extremamente rica, ela era apegadíssima as suas joias. No grande casarão, ela flagra filhos, filhas, genros, noras, netos e netas em uma acalorada discussão pela sua herança, ninguém lamenta a sua morte! Resoluta, ela vai ao local em que guardava as joias, reúne-as e joga-as na privada, dá descarga e elas seguem pelos dutos até se perderem nas águas caudalosas do rio Uruguai.

Em vida, o que podem tirar de você? As suas joias? Os seus carros? As suas propriedades? As roupas de grife que você adquiriu? Os milhões [ou os miseráveis] reais que você tem aplicados em conta bancária? Fiz um rápido recenseamento diante da morte súbita de um amigo, vítima de ataque cardíaco: os filhos dele têm profissão, são casados e, em tese, não dependeriam dos bens que ele deixou – então, agora, poderão melhorar a sua condição socioeconômica. Se um pai que nada tinha falece, a condição dos filhos não se altera. Eu, que não tenho filhos, não modificarei a vida dos que me sucederem em termos econômicos, logo, economizar ou não é indiferente para a minha posteridade.

Haverá sempre alguém a dizer: tu podes vender o carro ou a casa e garantir um atendimento melhor de saúde em tua velhice? E quem disse que eu vou envelhecer? Por que, raios, as pessoas insistem em “acumular” bens? Jean de Lery, o missionário francês que esteve no Brasil por volta de 1550, no Rio de Janeiro, destacava a respeitosa relação entre os nativos (que os portugueses chamaram índios) e a natureza: extraiam o necessário para a sobrevivência e ponto! Tratavam de viver e aproveitar o que lhes era ofertado.

No dia dos pais, observei o lamento dos filhos, cujos pais são falecidos. A par desses lamentos, havia histórias, memórias, lembranças, um gigantesco mundo de amor para ser partilhado: do que podem nos privar? Dos bens? Da liberdade? Da vida? Se vivemos até aqui (10, 20, 30 ou 100 anos) e se fomos presença e testemunho de honradez, dignidade, coerência, respeito, nada nos será privado, nada é privado daqueles que, inclusive, já partiram, porque o que realmente fica, quando morre alguém, é o ser – porque para o ter, a gente trabalha de novo, a gente se esforça de novo, a gente recupera aquilo que justa ou injustamente nos for surrupiado.

Elaine dos Santos - Professora

Doutora em Letras

Seiko DDD