Quando escolhemos a docência, o exercício diário de entrar em uma sala de aula e partilhar conhecimentos, escolhemos “professar”: reconhecer publicamente, confessar, declarar as ideias/convicções que forjamos durante anos de leitura e estudo que se associam à prática, ao cotidiano de quem, ano após ano, lida com crianças, com adolescentes, com sonhos e com esperanças.
Não caímos de paraquedas em uma escola, o exercício da nossa atividade profissional é resultado de quatro ou cinco anos de frequência a um curso de graduação nas áreas das licenciaturas, fomos, portanto, preparados, instrumentalizados para atuarmos como professores. Estudamos Aristóteles, Rousseau, Montessori, Piaget, inúmeros teóricos que, muito antes de nós, voltaram-se para o processo de ensino e aprendizagem e procuraram, ademais, entender como os seres humanos aprendem, por que aprendem, desenvolvendo métodos variados para propiciar mais conhecimento aos mais jovens, de forma sólida, que lhes garanta autonomia e protagonismo em suas existências. Lemos e lemos muito sobre Psicologia do desenvolvimento, para entender o pensamento daquelas crianças e adolescentes que nos são legados, em sua maioria, fonte de grandes esperanças dos seus pais, avós, tios, padrinhos. Discutimos ideias sobre Psicologia da educação, formas de abordagem do conhecimento (metodologia e didática), questionamos e aprendemos sobre Filosofia da educação, conhecemos, enfim, os meandros que movem o processo educacional e os seres humanos intimamente “afetados” por tudo isso.
Pautados pela ética, pelos valores morais que nos são inerentes e pelo cabedal teórico que aprendemos, entramos na sala de aula. Antes, porém, entramos em contato com seres humanos, dotados de medo, de dúvida, de angústias, de sonhos, de crenças e, entre eles, nos movemos cientes que a nossa açãopode (e vai) interferir em suas existências. Temos, diante de nós, filhos, netos, sobrinhos, afilhados de pessoas que, fora da escola, estão trabalhando, esforçando-se para que aquelas crianças e adolescentes possam almejar melhores condições de trabalho, de vida. Temos ciência que, na maioria dos casos, existe um esforço e uma esperança que motivam pais, avós, tios, padrinhos a encaminharem os pequenos para escola, ainda que, oficialmente, a motivação seja do ponto de vista legal.
Preparamos aula, planejamos. Para além do conteúdo a ensinar, engendramos formas de atrair, seduzir, sensibilizar o aluno para que conheça, para que saiba mais. Não explicitamos as ideias subjacentes ao ensino de Matemática, por exemplo, e a importância de desenvolver a logicidade; não explicamos que exercitar arte nas aulas de Educação Artística serve para ampliar/qualificar a sensibilidade que deveria ser própria do ser humano. Sabemos que, no conjunto, as crianças e os adolescentes modificar-se-ão; as suas habilidades serão ampliadas; a compreensão ingênua do mundo, muito provavelmente, será substituída por uma visão mais objetiva dos fatos, porque haverá conhecimento – e não apenas preconceito – envolvido na formulação de ideias.
Não somos maus, não somos tendenciosos, não somos doutrinadores – há a família, a igreja, a televisão que podem (e fazem) esse papel. Somos apenas e tão somente profissionais que procuram, sempre que possível, cumprir as suas obrigações da melhor forma possível. Não somos anjosnemdemônios, sabemos que erramos e acertamos, sabemos que há uma busca constante por nos corrigir, nos qualificar. E, assim, professamos a esperança que a sociedade nos reconheça como os elementos formadores de cidadãos, de pessoas conscientes, responsáveis. Não nos olvidamos, porém, que a legislação pertinente lembra que a família e a sociedade são corresponsáveis no processo educacional. Por vezes, pareceque nos atribuem o compromisso único e solitário pelo processo e, ademais, o ônus das eventuais falhas que venham a ocorrer – alguns esquecem que também trabalhamos para sobreviver em condições de dignidade, que temos família, amores e dissabores. A tarefa seria fácil se, na escola, às vezes, a famíliafosse presença efetiva (em ações, na consolidação de valores morais, por exemplo) e a sociedade, ao invés de nossa algoz, fosse parceira, ensinasse que o conhecimento liberta, empodera, qualifica cidadãos aptos a melhorarem essa mesma sociedade.
Elaine dos Santos
Professora Doutora em Letras
Autora de “Entre lágrimas e risos: as representações do melodrama no teatro itinerante”