O médico, clínico geral, que me atendeu desde a minha infância até a sua morte em 2014 e que, por muito tempo, foi meu confidente – especialmente, porque foi a única pessoa que, de fato, esteve comigo nos momentos mais difíceis, a doença e a morte dos meus pais – sempre me disse que era preciso aceitar que existem pessoas sem ambições. Em outras palavras, não era uma questão de ambição, mas uma questão de ponto de vista diante do mundo: ter uma casa, ter alimento farto à mesa, ter filhos e criar esses filhos com dignidade.
Entenda-se, pois, ambição, neste sentido, como estudar, viajar, conhecer o mundo, conhecer pessoas, transcender o pequeno mundo que habitamos. Nunca falamos em deter patrimônio, porque, como se sabe, caixão / urna funerária não tem gavetas e, mesmo que tivesse, o sepulcro seria violado logo após o sepultamento.
Nos cursos de licenciatura (Pedagogia, Letras, Biologia, História, Matemática etc.), eis um tema que é estudado, com maior ou menos profundidade, dependendo da abordagem de cada curso, da linha adotada por cada professor. No meu caso, ficou muito claro, com base nos estudos teóricos realizados, que possuir uma casa, ter uma mesa farta e criar filhos é uma resposta ao instinto da espécie (no nosso caso, a espécie humana), que corresponde à sobrevivência e manutenção da população humana sobre a Terra.
Tomo como ponto de comparação – e, de antemão, eu sei que ela não é a mais perfeita – os ideais de duas cidades-Estado da antiga Grécia: Esparta e Atenas. Quem se pauta pela sobrevivência e manutenção da espécie humana corresponderia, grosso modo, aos soldados espartanos, encarregados da segurança e conservação do status quo, Esparta sobreviveria graças ao empenho, à dedicação deles.
Na outra ponta, situava-se Atenas, em que se investia na formação mais acurada do Espírito: estudo das Artes, da Filosofia e que, de alguma maneira, é a herança dos povos gregos que chegaram até nós. Na Filosofia, Sócrates, Platão e Aristóteles costumam ser o ponto de partida para qualquer reflexão; nas Artes, detenho-me apenas no teatro, minha área de pesquisa e são referenciais, desde Téspis que andava pelas colônias representando peças em cima de uma carroça, mas, sobretudo, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. É preciso incluir Aristóteles que segue sendo a base fundamental para que se teorize sobre gêneros literários, entre outros temas.
Ao deter o olhar apenas sobre Ésquilo, Sófocles e Eurípedes – e com esse olhar abarcar uma imensa variedade de peças teatrais, com temáticas distintas -, já é possível refletir sobre a influência que “o cultivo do Espírito”, para além do instinto de sobrevivência, no meu ponto de vista, é necessário. A Filosofia, o Direito, a Literatura “ainda bebem” em suas tragédias para problematizarem a nossa realidade contemporânea.
Quase todos já ouvimos falar em Édipo ou complexo de Édipo. Uma profecia, antes do nascimento de Édipo, previra que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. Laio, o pai, assim que o menino nasceu, mandou que ele fosse sacrificado. O escravo incumbido dessa tarefa teve pena do bebê, amarrou-o a uma árvore e partiu (Édipo, o dos pés inchados). Alguém encontrou o menino, levou-o para outra cidade, em que ele foi adotado. Já adulto, Édipo tomou conhecimento da profecia e temeu matar os seus pais (adotivos), o que o fez fugir. Na estrada, sem destino específico, ele encontra uma comitiva, discute com o rei que chefiava a comitiva e mata-o. Era Laio, o seu pai. Ainda assim, ele segue adiante e, tempos depois, chega à cidade em que a rainha, viúva, deveria casar-se novamente. É desafiado a decifrar o enigma da esfinge: “Que animal anda em quatro patas pela manhã; em duas patas ao meio-dia e em quatro patas ao cair da tarde”. Édipo decifra o enigma e casa-se com a rainha. Já idosos, Édipo e Jocasta, tendo tido quatro filhos, descobrem-se mãe e filho. Ela se mata e ele vaza os olhos, ficando cego, passa a vagar pelo deserto. A crença popular diria que ninguém escapa ao seu destino.
Antígona, filha e meio-irmã de Édipo, acompanha-o nos últimos anos de vida, em que ele vaga pelo deserto, impondo-se o castigo de ter desposado a mãe. Ao regressar, Antígona fica sabendo que o tio, Creonte, havia imposto uma guerra de vida e morte entre os irmãos dela pelo trono que ficara vago. Com os dois mortos, Creonte apossara-se do trono e estava prestes a conceder honras funerárias a um dos sobrinhos e deixar que o outro fosse abandonado no campo de luta para ser comido pelos abutres. Era a sua lei, a lei do soberano que, naquele momento, ocupava o trono. Antígona rebela-se contra ele e deseja que se cumpra a tradição imposta pelos deuses, dando honras aos seus dois irmãos, já que ambos morreram no mesmo local, pela mesma causa, nas mesmas condições. Antígona incorpora, neste sentido, o ideal de justiça. Trata-se de uma personagem, frequentemente, retomada nos cursos de Direito para demonstrar que as leis não são circunstanciais e decorrentes da vontade de um soberano, por vezes, ditador.
Sob a minha ótica, ler, estudar, pesquisar, refletir constituem sucessos que engrandecem a alma, que permitem contemplar e compreender melhor o mundo em que vivemos. Para outras pessoas, o sucesso é ter dinheiro, carros, mansões (e até viajar ao fundo do mar!). Há uma considerável parcela da sociedade que se sente satisfeita com os instintos realizados. O que me levou a escrever este texto? Uma indagação que sempre me acompanha: se eu imagino considerar entender as demais pessoas, elas conseguirão compreender-me e aceitar as escolhas daqueles que optam pelo conhecimento, concebendo-o como um sucesso?
Elaine dos Santos
Prof. Dra. em Letras
Aposentada