Apresentei a minha tese de doutorado em 04 de março de 2013 e, de lá para cá, já vivemos uns duzentos anos (ou mais) no Brasil. Até aquela época, algumas obras eram fundamentais para entender a sociedade brasileira, refiro-me à “Casa grande & Senzala” (1933), de Gilberto Freyre; “Raízes do Brasil” (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942), de Caio Prado Júnior.
Detenho-me em “Raízes do Brasil” para a reflexão que pretendo traçar considerando a política nacional e, mais especificamente, na expressão cunhada por Sérgio Buarque de Holanda, o “homem cordial” – mal interpretada por um país em que grassa o analfabetismo funcional, político etc. e tal.
Cordial não expressa apenas o sujeito com "bons modos", aquele dotado de polidez no tratamento em sociedade. É preciso rastrear a sua etimologia, a origem da palavra, que se acha no latim "cordis", encontrando-se corda propriamente dita, mas, por derivação, tem-se o significado de "relativo ao coração".
Para a compreensão do sentido atribuído por Buarque de Holanda, a cordialidade no sentido de "bons modos" estaria, na sociedade brasileira, apenas na "superfície" - o brasileiro seria cordial pela necessidade, finge-se cordial para obter favores ou não ser prejudicado.
O homem cordial de “Raízes do Brasil” tem necessidade de expandir-se na vida social, na coletividade – não suporta o peso da individualidade, precisa “viver nos outros” - uma espécie de extensão da sua suposta cordialidade que precisa ser "sancionada", aprovada pelos outros. Somos pródigos em manifestar o nosso suposto carinho com o outro em expressões como: sinhozinho, amiguinho, florzinha, amorzinho.
Acontece, porém, que essa "cordialidade" quer transcender o espaço do Estado (organização política, representada pelo país, pelos estados, pelos municípios), mas é apenas pela transgressão da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado e que o indivíduo se faz cidadão. Cabe recordar Jean Jacques Rousseau e o que ele denomina de “Contrato social”, isto é, para viver em sociedade, os homens acertaram / aceitaram cumprir certas regras que formam o Estado e respeitar essas regras, como é o caso da Constituição da República.
Sendo assim, teoricamente, não existe “cidadãozinho”, muito menos “cidadãozinho amiguinho”, nem a concessão de “favorzinho” para o “amiguinho”, afinal somos todos iguais perante a lei [ressalve-se Aristóteles, mas ficaria muito teórico problematizar as ideias de Aristóteles aqui]. Tem-se, pois, o choque de "interesses" que gera a "cordialidade". Se o político faz “favorzinho” para o “amiguinho” em função dessa cordialidade, ele transgride as normas sociais, as regras, a lei. Porém...
Vivemos, segundo Sérgio Buarque, numa sociedade "precária", em que o chefe do governo (federal, estadual, municipal) é entendido como um "grande pai" (o pai da família burguesa patriarcal que sai dos domínios da família para ocupar posições políticas). Um bom exemplo dessa compreensão está no adjetivo atribuído a Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, mas se nos detivermos a pesquisar, encontraremos inúmeros políticos que usam e abusam dessa ideia, assim como haverá inúmeros Sassá Mutema, o personagem fictício da telenovela “O salvador da pátria”.
Ao longo da nossa história, os funcionários do Estado (governo) burocrata não se dirigiram a interesses objetivos, sobressaindo-se as vontades particulares, os “favores”. Há, na nossa sociedade, em conformidade com “Raízes do Brasil”, uma oposição ferrenha aos ritos (o melhor exemplo é o uso do prenome nas relações sociais: Maria, João, Isabel, Ana, Antônio. Outras sociedades adotam o nome de família para essas relações: Costa, Araújo, Silva, Carvalho), há oposição à ordem, à hierarquia...quer seja no terreno do religioso, do econômico, do político – parece sempre possível burlar a norma, a lei. Inúmeras vezes, se prestarmos atenção em nossas redes sociais, vemos comerciantes reclamando que vendem “fiado”, cobram o devedor e passam a ter um inimigo ferrenho. O que houve? Uma norma, um acerto (ainda que não tenha sido feito por escrito) foi rompido, uma relação de confiança foi quebrada e quem deveria ofender-se, o credor, além do prejuízo arca com a inimizade, afinal faltou-lhe “cordialidade”, compreensão com o devedor que não demonstrou interesse em pagar, nem respeito em negociar.
Com tudo isso, enveredamos para uma relação promíscua com a política (federal, estadual, municipal): não nos colocamos diante do servidor público, mas do amigo pessoal, personalíssimo; não é o dinheiro público, é o dinheiro que EU gerencio, o dinheiro do MEU imposto. Assim, em épocas de eleição, vendemos o nosso voto com a perspectiva de termos interesses pessoais satisfeitos, sem nos preocuparmos com o conjunto da nação (somos, por excelência, excludentes: "os meus", "os seus" e falta-nos a ideia de "os nossos") e, em razão disso, nascem as seitas partidárias e os adoradores acríticos de políticos. Estamos diante do cidadãozinho que vende o seu votinho para o politiquinho que é amigo do outro politiquinho que vai obter um favorzinho, porque o cidadãozinho tem muita crença na promessinha do politiquinho cujo passado lhe é desconhecido, porque ele, cidadãozinho, não tem qualquer interesse em política. Esquecemo-nos que viver é um ato político feito de violência extrema para nos mantermos vivos na educação, na saúde, no trânsito, na segurança etc.
Professora Elaine dos Santos
Doutora em Letras/UFSM
Revisora de textos acadêmicos
Currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/9417981169683930