Nascido em 17 de dezembro de 1905, Erico Verissimo faleceu em 28 de novembro de 1975, assim sendo, o ano de 2025 marca 120 anos de seu nascimento e 50 anos de sua morte.
Considerando o maior prosador (romancista) da Literatura produzida no Rio Grande do Sul e popularizado pela adaptação de algumas obras para a televisão, o escritor que nasceu em Cruz Alta adquiriu projeção nacional, mas, antes disso, tem sua qualidade literária reconhecida pela crítica e obras traduzidas para espanhol, inglês, italiano, russo, entre outros.
Contudo, de um modo geral, quando se fala nos romances do autor, o primeiro nome que os leitores lembram é “O tempo e o vento”, a saga da família Terra Cambará, que engloba três volumes com enfoques diferenciados: “O Continente”, a narrativa mítica sobre a formação do Rio Grande do Sul”, assim como “O Retrato” e “O Arquipélago”.
As figuras mais lembradas, com muita recorrência, são Ana Terra e Rodrigo Cambará (eu costumava dizer para os meus alunos, ela é terra, permanência; ele é vento, passagem; mas não se tome isso como uma “verdade”, era uma metáfora que a professora de literatura usava para fixar algumas ideias sobre o romance).
Pedro Missioneiro, o menino filho de um tropeiro paulista e uma indígena, encontrada em trabalho de parto por nativos aldeados nos Sete Povos das Missões, é o ancestral mítico do gaúcho: meio indígena, meio branco, que se diz “hijo de la Vírgen”, criado pelos jesuítas espanhóis. Há, igualmente, entre os personagens célebres a figura de Bibiana Terra Cambará, que, de fato, une os nomes Terra (de Juvenal, seu pai; Pedro, seu avô, e Ana, sua bisavó) e Cambará, do marido Rodrigo. Apaixonada pelo capitão, ela submete-se a esse amor de maneira cega, confia nele, a par das traições amorosas e dos eventuais sumiços.
Ana Terra, Bibiana Terra Cambará são, pois, frequentemente, figuras femininas muito referidas pelos leitores de Erico Verissimo, mas me parece sempre pertinente referir outra personagem, a dinda Maria Valéria, que está, desde o princípio, nos capítulos de “O Sobrado”, que dão início ao volume I de “O continente” e que funciona como uma espécie de elo de toda a narrativa, afinal, é quem assume o Sobrado, quando Bibiana já não pode mais comandá-lo.
Maria Valéria não pertence a mesma linhagem de Bibiana, mas é herdeira do sangue de Ana Terra e Pedro Missioneiro. Ela é filha de Florêncio Terra, neta de Juvenal Terra, que era filho de Pedro, o menino que nasceu da união entre Ana Terra e Pedro Missioneiro.
Durante o cerco ao Sobrado, enquanto a irmã Alice espera o nascimento do terceiro filho (na verdade, a menina que se chamaria Aurora, mas faleceu), Maria Valéria coordena a alimentação, o suprimento de água e ainda se ocupa com o tratamento dos feridos. Ela critica
veementemente Licurgo, o cunhado, por não pedir uma trégua para o atendimento da esposa, mas ele nega-se a fazê-lo.
Eis o traço forte de Maria Valéria – além de solteira, o que, por si só, transgride o modelo conservador sul-riograndense (quiçá, de origem portuguesa), ela não teme emitir a sua opinião, nem que isso corresponda a um enfrentamento direto ao senhor do Sobrado.
Sob certo aspecto, pois, é possível afirmar que Maria Valéria, como personagem, constitui um questionamento à identidade feminina – recordando que a sua personagem aparece durante a Revolução Federalista, entre 1893 e 1895, quando acontece o cerco ao Sobrado da família Terra Cambará.
Ademais, ela está entre os combatentes, transita entre eles, ocupa-se dos cuidados com eles, ela insere-se em um ambiente que, costumeiramente, não pertence ao universo feminino, às funções sociais atribuídas à mulher. Agregue-se que, na ausência de Alice, acamada, ainda assume a responsabilidade pelos sobrinhos, Toríbio e Rodrigo (o médico que será o centro dos volumes de “O retrato”), e pela velha Bibiana, cega, mas que se mantém atenta aos movimentos.
Ainda importa referir que pesquisadores como Lélia Almeida consideram que Maria Valéria, solteira, Bibiana Cambará e Ana Terra são protagonistas da história, quando lhes falta o companheiro, o marido. Neste sentido, a pesquisadora afirma que até mesmo as mulheres do Rio Grande são levadas ao enfrentamento das adversidades para a sobrevivência.
Ana Terra passa a abominar cheiro de cigarro, cheiro de bebida, cheiro de homens, após o estupro coletivo protagonizado pelo bando de castelhanos; Bibiana precisa assumir as rédeas da família, quando acontece a morte de Rodrigo e, para além disso, ela “trama” o casamento do filho Bolívar com a Teiniaguá para reaver o terreno que fora do pai, onde está construído o Sobrado.
Talvez, diferente do que afirma Ana Terra ao longo da narrativa, nem sempre as mulheres do Rio Grande apenas esperaram, por vezes, eles foram e fizeram acontecer.
Convido você a revisitar as páginas de “O tempo e o vento”, em sua totalidade: “O Continente”, “O retrato” e “O Arquipélago” (em tom mais intimista) e rever o papel dos grandes heróis do território gaúcho, assim como refletir sobre conceitos pré-concebidos. Afinal, é tempo de festejar 120 anos de Erico Verissimo, aproveitando para reconhecer a qualidade do seu trabalho literário, imiscuindo-se mais detalhadamente em sua obra. Que tal?
Elaine dos Santos
Doutora em Letras / Professora aposentada.
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